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"Casos de racismo que chegam ao Judiciário não são compatíveis com o número real", diz juiz em AL

25/04/2022 09h09 - Atualizado em 25/04/2022 09h09
'Casos de racismo que chegam ao Judiciário não são compatíveis com o número real', diz juiz em AL
Ana Clara alves, presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial / Foto: Assessoria - Foto: Reprodução

Nos últimos cinco anos, 10 casos envolvendo racismo chegaram ao Tribunal Judicial de Alagoas (TJAL). Em 2021, a capital registrou apenas uma condenação pelo crime. Porém, apenas nos últimos três meses, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do estado recebeu oito denúncias dentro do eixo temático racial, o que não condiz com o número real que chega ao Judiciário.

Ao Cada Minuto, o juiz da 14ª Vara Criminal de Maceió, de Crimes Contra Populações Vulneráveis, Ygor Vieira de Figueiredo disse que o número de casos de racismo que chega ao Judiciário não são compatíveis com o número real. “Isso porque boa parte são naturalizados pela sociedade e muitos dos que são vítimas não se sentem suficientemente amparados pelo poder do estado, de uma forma geral, para fazer a denúncia e levar o caso adiante”.

O juiz destaca que a capital recebe poucos crimes no enquadramento de racismo e a maioria são direcionados à população LGBTQIA +. Esse ano, a vara recebeu apenas dois processos.

“Nós tentamos dar celeridade a esses processos, mas eles chegam pouco ao nosso conhecimento”, afirma Figueiredo. Ele acredita que isso ocorre, não porque aconteçam com uma baixa frequência, mas devido ao racismo estrutural presente na sociedade. “Por isso, as pessoas não se sentem à vontade para denunciar e acabam normalizando esse tipo de conduta”.

Juiz Ygor Vieira de Figueiredo / Foto: AssessoriaEm


Maceió, ano passado, houve apenas uma condenação pelo crime de racismo,que envolvia a população LGBTQIA+. “Foi um caso amplamente divulgado pela imprensa, de uma mulher transexual que quis usar o banheiro de um shopping da capital, mas foi barrada por um segurança”, esclarece.

Recentemente,o juiz recebeu o caso de um pastor que, supostamente, teria praticado crime de racismo desejando a morte do humorista, Paulo Gustavo. “A questão do banheiro foi julgada e a segunda deve ser julgada em, no máximo, 30 dias”.

De acordo com o magistrado, para além dos crimes de racismo, que se enquadram na Lei do Racismo (7.716/89), chegam com uma frequência maior os processos de injúria racial. “Estes ocorrem quando alguém ofende uma pessoa utilizando critérios de cor de pele, orientação sexual ou idade”.

Na capital, as ações envolvendo crimes contra vulneráveis, dentre eles os de racismo, são julgadas na 14ª Vara Criminal. Já no interior, esses casos costumam ficar em varas únicas, que recebem todos os tipos de ocorrências, o que dificulta o andamento dos processos.

Denúncias

A Comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Alagoas recebeu, em três meses de atuação, oito denúncias dentro do eixo temático racial. Para Ana Clara Alves, presidente da comissão, existem casos que não são denunciados pelas vítimas.

Os números são expressivos, mas entendemos que existem muitos casos de subnotificação, visto que o assunto ainda é diariamente invisibilizado”, conta.

Ela informa que o papel da comissão de Promoção da Igualdade Racial é proporcionar segurança jurídica às vítimas e conscientização da sociedade em Alagoas.

“Alagoas apresenta grande arcabouço cultural quando se trata da população negra, mas ainda apresenta tabus quando o assunto é racismo”, lamenta.

Ana Clara avalia ainda que Alagoas apresenta elevados índices referentes à taxa de mortalidade de pessoas negras e violência doméstica contra a mulher negra.

Medidas de enfrentamento

O Tribunal de Justiça, no ano retrasado, criou a Comissão Direitos Humanos, onde debatem temas como esse para tentar melhorar a questão do racismo estrutural e preconceito. A OAB também tem uma comissão própria para debater o tema.

Na comissão, as vítimas recebem o direcionamento especializado sobre o caso, sendo papel da comissão acompanhar todo o processo jurídico até sua resolução efetiva.

As vítimas podem entrar em contato com o comitê por qualquer canal de atendimento telefônico da OAB ou também dirigindo-se presencialmente até a Instituição, onde será realizado o atendimento e acompanhamento cabível ao caso.

Para além disso, foi criada formalmente a Delegacia de Vulneráveis, mas que ainda não foi instalada e existe apenas no papel, mas que deve ser aberta após o aumento do efetivo através de um concurso. “Isso contribuirá muito para que tenhamos mais relatos e, consequentemente, julgamentos”, destaca o juiz.

Luís Felipe Mesquita e advogados presentes na delegacia para realizar denúncia / Foto: Maria Luiza Lúcio/CM“Eu fui silenciado”



Um funcionário de uma loja de um shopping situado no bairro da Cruz das Almas, em Maceió, denunciou um caso de racismo que o mesmo sofreu dentro do shopping. O acusado de cometer o crime é um ex-professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

À reportagem, a vítima identificada como Luís Felipe Mesquita, conta que a loja que ele trabalhava não tem banheiro interno, por isso ele se deslocou até o banheiro do próprio shopping. “Quando cheguei lá, me deparei com um senhor de porte magro e baixo, onde o mesmo me olhou e fez sinal de macaco, além de sinal de morte”.

Ele conta que precisou lutar pela causa sozinho, já que não recebeu nenhum tipo de apoio da loja ou shopping.

“O grande fator que me abalou acima do racismo foi estar sozinho em um ambiente de trabalho órgão privado, onde as pessoas sabem porque eu relatei e não fizeram nada”, conta.

Devido a isso, Luís só trabalhou no local do caso durante uma semana, já que se sentia exposto e em constante perigo. “Não consegui continuar porque me sentia exposto, sentia que podia acontecer novamente, o ambiente e as pessoas me remetiam à agressão”.

Neste ano, a Polícia Civil de Alagoas (PC/AL) concluiu o inquérito que apurou discriminação racial contra Luís Felipe e o acusado foi indiciado pelos crimes de injúria racial, perseguição e ameaça.

Luís comemora a vitória, mas destaca que a luta ainda não acabou. “É um passo muito grande que eu consegui dar.

"Nesse momento estou sentindo que minha voz foi ouvida. Por quatro meses eu fui silenciado, sendo obrigado a engolir seco ameaças, gestos, violência e quando eu vi a denúncia no Ministério Público pude respirar”, comemora.

Ele lamenta, ainda, que por muito tempo sofreu com o medo de olhares e, por isso, evitou soltar o cabelo e andar em certos lugares, como restaurantes e mercados.

“O racista rotula você de uma forma que você se sente culpado, como se o lugar que você está não é para você. Mas agora me sinto ouvido e voltei a respirar”, conclui.

Enquadramento de crimes contra população LGBTQIA+

O Superior Tribunal Federal (STF), sob o fundamento de que o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis, determinou que, até que o Congresso Nacional edite lei específica sobre a matéria, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, devem ser enquadradas nos crimes previstos na lei 7.716/89 (lei que tipifica o crime de racismo).

Fonte: Cada Minuto com *estagiárias sob supervisão da Editoria